(**Al Margen)
Por Rogéria Taragano, psicóloga
A ilustração acima, do artista argentino Al Margen, fala por si e chama atenção para um fenômeno de tempos estranhos, aquele que escancara a enorme necessidade de exposição pessoal observada pela proliferação de selfies, de caras e bocas, da busca incessante pelo melhor ângulo, da postagem que vai do prato no restaurante, passa pelo pão que se come, pelo museu que se visita (mas sabe-se lá se visto ou não…), pelo parto do filho ao vivo, pelas viagens (somente as incríveis), pelo ativismo fugaz, pelos posicionamentos viscerais. Publico, logo existo, parece ser a máxima que reflete essa egolatria e, em minha opinião, cansativa necessidade midiática.
Gostaria de fazer um paralelo com algo oposto que observo a partir do meu trabalho como psicóloga clínica, no qual acompanho o árduo revelar de veladas experiências dolorosas, em função das quais são usadas estratégias para sumir do olhar do outro, do olhar social, do olhar do desejo. Outros profissionais, que, como eu, atendem pacientes com transtornos alimentares (anorexia e bulimia nervosas, por exemplo), estão habituados a ouvir que muitas vezes a doença começou para servir ao propósito de deixar o corpo (especialmente o feminino) desprovido de atrativos, de curvas e formas que venham a chamar a atenção e despertar qualquer associação com a sexualidade.
No caso da obesidade e do comer compulsivo, o propósito, mesmo que inconsciente, da camuflagem também pode ser observado. De acordo com o jornal O Estado de São Paulo (19/12/2017), em junho/2016, nos Estados Unidos e, recentemente, no Brasil, foi publicado o livro – FOME: Uma autobiografia do (MEU) corpo. A escritora, Roxane Gay (que é colaboradora doThe New York Times e do The Guardian e que, segundo a reportagem, já esteve na lista dos livros mais vendidos do mundo anglófono, com o romance Má feminista), trata, desta vez, de maneira direta, da situação de estupro que viveu aos 12 anos e da conturbada relação que desenvolveu com o corpo a partir de então. Eu comecei a comer para mudar meu corpo. Fui obstinada (…) Eu sabia que não conseguiria suportar outra violação daquele tipo, e comia porque achava que, se meu corpo se tornasse repulsivo, eu poderia manter os homens à distância, escreve Roxane, de acordo com a reportagem. O livro aborda, ainda, a perspectiva da autora sobre como se sentia observada e vigiada pelas pessoas em geral, sobre como estas lidam com os obesos e como a gordofobia afeta relacionamentos e situações do dia-a-dia, tais como sentar-se num avião, comer na frente dos outros e comprar roupas.
Na esteira da mesma temática, temos assistido à avalanche diária de depoimentos de inúmeras personalidades (na maior parte de mulheres, mas também de alguns homens) em que revelam situações passadas, de assédio ou de abuso sexual, que estavam até então escondidas no sótão da vergonha e do constrangimento pessoal. Relatos desse tipo, quando em consultório, costumam vir acompanhados de sentimentos de inadequação, culpa e descrédito. E, não raramente, seus protagonistas foram vitimados na infância/adolescência, momentos em que, por vezes, nem mesmo os pais são considerados fontes seguras de acolhimento. No entanto, são situações que costumam se manter como fantasmas assombrando a vida de quem as viveu. Vida esta para sempre modificada, conforme a própria história de Roxane, que talvez tenha precisado primeiramente sentir-se reconhecida e valorizada, para que pudesse ter coragem de expor o que lhe aconteceu.
Os fatos descritos acima são ao mesmo tempo diferentes e parecidos. Por meio deles, pode-se constatar que, para o bem ou para o mal, as redes sociais e os fenômenos da modernidade, nos quais os limites entre o público e o privado adquiriram nuances de muitos tons, tiram das sombras e tornam público o que fora velado (por opção ou por condição). São tempos diferentes, mas ainda estranhos…
*Rogéria Taragano é psicóloga clínica em consultório particular e Supervisora do atendimento ambulatorial em Anorexia Nervosa do serviço de psicologia do AMBULIM-IPq-HC-FMUSP.
** Uso de imagem autorizado pelo próprio artista: Facebook (@AlMargen Pagina)