5 de março de 2018
Quando a relação doentia com o corpo é reforçada por profissionais de saúde
Por Daiana Garbin, jornalista
Por 22 anos eu vivi fora do meu corpo, como se fôssemos dois seres diferentes: “eu” e “meu corpo”. Costumava me referir a ele como um ser estranho, distante, um inimigo, algo de que eu não gostava e que não fazia parte de mim. Sentia meu corpo como se ele fosse um molde de massinha que eu queria modelar até ficar perfeito. Esqueci que eu era um ser vivo, que nasci com uma estrutura óssea e muscular diferente da dos outros, que meu corpo tem um formato e um tamanho únicos, e que exatamente por isso não posso compará-lo.
Esqueci tudo isso e fui procurar ajuda profissional para moldar meu corpo. Hoje, olhando para trás, sei que errei muito, me machuquei, mas algo pior me chama a atenção: muitos dos profissionais de saúde que eu procurei, em vez de perceberem que eu estava doente ou apontarem um caminho para a cura, apenas reforçaram minha guerra com o corpo.
Eu odiava minhas curvas, sentia meus ombros e quadril largos, meus braços grossos, e por isso, aos 12 anos, passei a tentar não comer. Foi assim que a minha relação com a alimentação virou um inferno. A comida controlava minha vida, meus pensamentos, minhas ações. Sempre que eu engordava, ficava com vergonha das pessoas, cancelava compromissos, mentia que estava doente para não ir trabalhar. É que junto com a minha “gordura” vinha um sentimento de inferioridade. Era uma sensação de inadequação, de vergonha extrema do meu corpo e do meu fracasso diante da comida.
Para conseguir ser seca como eu sonhava, tomei todos os tipos de remédios para perder peso, fiz todas as dietas que existem, fiquei dois anos sem comer carboidratos, fiz lipoaspiração 3 vezes. Tentei vomitar depois das refeições, mas não consegui. Desejei ter anorexia, mas não resistia muitos dias sem comer.
Você deve estar pensando que passei por tudo isso porque era obesa. Na verdade, não. Tenho 1,70 metro e meu peso variou, nos últimos vinte anos, entre 57 e 72 quilos, o que corresponde a IMCs (Índice de Massa Corporal) entre 19,70 e 24,50. Ou seja, tudo dentro da faixa considerada normal pela Organização Mundial da Saúde. Em termos médicos, nunca estive nem com sobrepeso. Mesmo ciente de que estava dentro da faixa de peso saudável, eu não era capaz de sentir isso.
Era uma sensação interna de inadequação que infelizmente foi reforçada por profissionais de saúde. A primeira vez que eu fui a um médico endocrinologista, aos 16 anos, ele me receitou remédios para emagrecer, e veja bem: eu tinha 16 anos e um peso absolutamente normal. Ao longo da minha vida adulta outros 5 médicos me receitaram anfetaminas, sibutramina, fórmulas manipuladas com moderador de apetite, ansiolítico, laxantes e diuréticos, Xenical e até Victoza. Naquela época, OBCECADA pela magreza, eu achava tudo isso perfeitamente normal.
Hoje eu me pergunto:
Por que esses médicos NUNCA questionaram se era correto/adequado receitar esses remédios para uma mulher que estava com o peso normal?
POR QUE ME RECEITARAM REMÉDIOS? SÓ PORQUE EU PEDI?
POR QUE OS REMÉDIOS PARA EMAGRECER TÊM UM TIPO DE “LICENÇA NÃO-ESCRITA” PARA SEREM RECEITADOS MESMO PARA QUEM NÃO PRECISA?
Por que isso é normal e nem sequer é questionado?
Não estou aqui para julgar e avaliar a conduta médica de ninguém. Isso cabe aos conselhos que regulamentam as profissões da área da saúde. Quero apenas que todos nós, pacientes, familiares, conselhos e profissionais da saúde pensem sobre isso.
Quando um médico receita um medicamento para uma mulher de peso normal emagrecer, ele pode estar gerando ou perpetuando um transtorno alimentar.